Ramiro Musotto

Ramiro Musotto

 

Ramiro Musotto

*texto publicado na integra do original.

 

Ramiro José Musotto, Ramiro Musotto, nascido em 31 de outubro de 1963 na cidade de La Plata a capital da província de Buenos Aires e residente desde pequeno em Bahia Blanca, na região da patagônia, há 650 km da Cidade de Buenos Aires, de onde diversas vezes disse ter origem. Uma desenvolvida cidade de 300.000 habitantes por sua industrialização já foi chamada de “Liverpool Argentina". Faleceu recentemente, aos 45 anos, em 11 de setembro de 2009, na cidade de Salvador, Bahia, deixando três filhos, saudades e grandes contribuições na área da música instrumental, eletrônica e de pesquisa em etnomusicologia.

Durante sua juventude, até atingir a maioridade fazia parte da Orquestra Sinfônica de Bahia Blanca onde se iniciou na arte da percussão clássica e notação musical. Foi nessa cidade que além da academia se aventurou no free jazz, música popular (Banda Mate) e nas formas sofisticadas que assumiu o rock nos finais dos anos 70, segundo um de seus parceiros dessa época Sérgio Beresowsky, que junto com Martín Musotto formaram um grupo (La Turma) com interesses desde a música “testimonial” latino americana até à vanguarda da música experimental.

Por volta de finais de 1982, viajou para São Paulo, Brasil onde passou um ano, estudando e tocando seus já conhecidos boleros e guarânias. Foi aluno de Zé Eduardo Nazário, conhecido professor e integrante Grupo Experimental de Percussão de São Paulo, com trabalhos gravados com Gato Barbieri (1970), Hermeto Pascoal (1973, 1975) Egberto Gismonti (1977, 1978) entre outros.

Com 21 anos, em 1984, chegou na Bahia onde residiu durante doze anos. Integrou-se no mundo da música e “universo do pelô” (pelourinho) em especial da capoeira. Segundo músicos de seu convívio na época Sergio Beresovsky, Ângela Lopo formou banda de rock: Ramiro na bateria, Willy Wirth no baixo e voz, Dominic Smith, guitarra e voz e Pedro Giorlandini, guitarra e voz. Em Salvador acompanhou nascente axé music da qual sua participação tem peso dos inventores juntamente com Margareth Menezes, Carlinhos Brown, Gerônimo, Daniela Mercury.

É também desse período inicial suas apresentações como baterista da banda C.A.N.O.S. e o aprendizado da tarefa de programar baterias eletrônicas. Seu estilo? Atenção, Pesquisa, Estudo, com algo de rock, de música eletrônica e de suas conquistas e assimilações da música afro, do samba, candomblé e percussão com berimbau, a essa altura já influenciado pelas criações de Gato Barbieri & Naná Vasconcelos (1971) de quem era fã declarado. Dividia-se entre seu trabalho como músico e como sonoplasta, arranjador, inclusive trabalhando nos estúdios da WR (1986 – 87) onde começaram as gravações desse recente mercado musical da Bahia.

Em 2003 lançou seu primeiro álbum, Sudaka, considerado um dos trabalhos mais criativos e originais de música eletrônica já produzida no Brasil. Sem maiores recursos de gravação (gravado em casa e em quartos de hotel durante turnês com o Skank) em suas 10 faixas se somam as experimentações mais para o space rock do que para batidas eletrônicas da dancing music, tanto influenciadas pelas músicas do anglo-indiano Talvin Singh, baseada na repetição hipnótica do groove, como das percussões experimentais de Naná Vasconcelos, com um sabor próprio das músicas de protesto, dos cangaceiros e lamentos dos descendentes de escravos africanos. É nítida a intencionalidade da incorporação de tradições étnico-musicais, buscando sua unidade/ identidade, até mesmo pelo título do álbum, cujo nome é o termo pejorativo, “sudaka”, com que os europeus, especialmente italianos e espanhóis, costumam chamar os sul-americanos.

Como diz seu release: em Sudaka coexistem harmoniosamente cânticos indígenas (Xavantes), música dos pigmeus, o cineasta Glauber Rocha (em Antônio das Mortes), afro-baianidades (mescla o bloco afro Ilê Aiyê e o grupo de pagode Harmonia do Samba através de samples) e convidados especiais como Gato Barbieri (saxofonista argentino radicado nos EUA), Lulu Santos e Lelo Zanetti (baixista do Skank). Somem-se as referências aos deuses astecas (Tezcatlipoca) e ritmos afro-baianos, ou às nações africanas como o ijexá acentuado por toda a musicalidade do berimbau, valorizado com maestria.

Ramiro foi para o Rio de Janeiro e mas voltou, em 2004, para Salvador para desenvolver sua carreira solo. Dessas viagens contatos e com mercado musical do sul do país podemos destacar sua participação como percussionista nos CDs de artistas como Adriana Calcanhoto, Kid Abelha, Lenine, Marisa Monte, Zeca Baleiro, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Maria Bethânia, João Bosco, Paralamas do Sucesso, Marina, Lulu Santos, Skank, Titãs, Fernanda Abreu, Sérgio Mendes, Zélia Duncan, Gal Costa e mais recentemente Jorge Drexler, Paulinho Moska e Kevin Johansen. Além dos baianos com que já trabalhava Margareth Menezes, Gerônimo, Daniela Mercury.

Entre os discos em que produziu e/ou integrou à equipe de produção destacam-se: “Um Canto para subir”, de Margareth Menezes” (Vinil, 1990) o disco que segundo consta levou David Byrne a convidar Margareth para apresentações no exterior; “Pet Shop, Mundo Cão” de Zeca Baleiro (2003); “Parada de Lucas” de Lucas Santtana (2003) e de Daniela Mercury, “Canibália” o nono álbum de estúdio da cantora, (2009) sem contar com as participações na produção e arranjos específicos para os diversos cantores já citados, onde é inesquecível a produção da faixa “Eu sou Negão” de Gerônimo face ter sido esta a primeira vez que a percussão de um bloco foi programada numa bateria eletrônica, constituindo-se, como dito por alguns críticos, como um marco divisório no carnaval da Bahia. Em depoimentos de Neguinho do Samba (Olodum) seu parceiro de ensaios e gravações ou Daniela Mercury, Ramiro é considerado parte da história da música da Bahia.

Em dezembro de 2006 Ramiro apresentou um dos principais trabalhos de análise e crítica musical, o Wokshop sobre Samba Reggae, além do livro inacabado por seu falecimento “O berimbau da Bahia”. O referido workshop de 18 horas foi realizado na AMBAH - Academia de Musica da Bahia. Seu conteúdo incluía um delineamento da historia do Samba -Reggae, o samba dos blocos afros. Descrições das “técnicas básicas dos 4 instrumentos do Samba reggae (caixa, repique, timbau e surdos) com suas distintas afinações, incluindo notação e partitura dos 4 instrumentos.

Nesse trabalho também classificável como de etnomusicologia incluía um estudo do Toque do Ile Aiye antigo, toques ancestrais de samba baiano. (Kabila ou Kabula - samba de candomblé de Angola), estudos sobre o Samba Chula e Samba Duro e toques básicos derivados do Olodum além de pesquisas sobre utilização do timbau (frases e solos de samba) e de arranjos contemporâneos para orquestra de Samba-Reggae (Drum'n'bass, Funk). O material desse curso ainda está por ser resgatado.

O livro o Berimbau da Bahia bem mais elaborado com partituras e análise dos toques de berimbau, como dito, estava em vias de preparação para impressão quando foi interrompido pelo falecimento do autor. Sua conclusão vem se tornando uma realidade graças a colaboração de seus amigos e parceiros musicais Ramiro Gonzalo (Ramirito), Nestor Alberto Caballero (Bocha) e Sebastian Notini, a partir do trabalho de produção organizado pelo também músico e poeta Cardan Dantas e pelo presente autor desse texto.

Em 2007 lançou Civilizacao & Barbarye no Brasil, produzido por ele mesmo e que conta com participação de convidados internacionais dos EUA (Arto Lindsay), da Argentina (Santiago Vazquez), do Irã (Rostam Miriashari), da Bahia (Lucas Santtana), da Paraíba (Chico César) da Suécia (Sebastian Notini) além do quase cubano Léo Leobons, compondo sua visão de um continente pluri – étnico.

Foi inicialmente lançado no final de 2006 na Argentina, segundo consta por depoimentos do autor inspirado no ensaio político Facundo - Civilização e Barbárie, de Domingo Faustino Sarmiento, de onde vem o título do álbum. Em suas palavras. "Esse título tem a ver com o trabalho que faço. O livro é uma análise sociológica da história argentina, aborda todos os conflitos, desde a conquista do deserto até a imigração. Minha música é uma mescla de cantos tribais afro-americanos com soluções tecnológicas".

Suas 10 faixas incluem experimentos musicais ainda mais aprimorados que seu primeiro álbum com cantos de crianças indígenas (guaranis), o choro de Jacob do Bandolim (Assanhado) os ritmos de ochossi e ogum do candomblé baiano, um antigo tema cubano, Yambú (dos Muñequitos de Matanzas), a chula do Recôncavo Baiano (M'Bala) renovados ao novo som guitarra e berimbau eletrônico. Sem perder sua relação com as canções de protesto, mistura referências do cangaço com discurso zapatista além da própria oposição trágica sugerida pelo título.

Segundo seu depoimento em entrevista para o Diário do Nordeste: "Tentar ver o outro de uma maneira diferente. De uma maneira ampla e objetiva que impeça que os conflitos apareçam: a eletrônica e étnica. O tecno e o regional. O primeiro mundo com o terceiro: civilizacao e barbarye. Brasil e Argentina: Sudaka. Acho incríveis os cuidados que temos que ter pra misturar ritmos e músicas de diferentes lugares para que depois tudo soe harmonioso. É como um símbolo do que se passa no mundo hoje, não temos cuidado em entender nem em como nos misturar e o mundo está cheio de racismo, xenofobia e incompreensão."

Que dizer então de Ramiro? Um percussionista sinfônico, um especialista em gravações eletrônicas, multimídia, arranjador, um virtuoso instrumentista? Para mim, que pude estabelecer breve contato e estudar o seu livro “O berimbau da Bahia” na tentativa impossível (pelo diálogo interrompido) de fazer uma revisão etnográfica de seu texto juntamente com a antropóloga Elizabeth Rodrigues Hoisel, só posso dizer que conheci um etnógrafo, por suas cuidadosas descrições e pesquisas de campo, um especialista em identificação de estilos e notação musical.

 

Paulo Pedro P. R Costa

no livro “O berimbau da Bahia” de Ramiro Musotto.